1. Introdução:
A
Convenção de Haia foi aprovada em 1980 com a intenção de proteger a criança, no
plano internacional, dos efeitos prejudiciais resultantes de mudança de
domicílio ou retenções ilícitas e estabelecer procedimentos que garantam o
retorno imediato da criança ao Estado de sua residência habitual, bem como
assegurar a proteção do direito de visitas.
De acordo
com a Convenção, há duas possibilidades de se configurar o “sequestro”: quando
o genitor ou o responsável subtrai a criança de sua residência habitual,
levando-a para outro país, sem o consentimento do outro genitor ou responsável;
ou quando o genitor ou o responsável consente na viagem da criança para o
exterior, mas o outro genitor ou responsável a retém no país estrangeiro por
tempo indeterminado.
Logo
quando a Convenção foi aprovada, a maioria dos casos de subtração dos menores era
cometida pelos pais, descontentes com a atribuição da guarda à mãe. Em
represália ou em autodefesa, os pais levavam os filhos para o exterior, onde
acreditavam que podiam viver sossegadamente com aqueles.
Atualmente
o quadro é diverso, a mãe tornou-se o sujeito ativo mais comum desta conduta e
foge por motivos profissionais, familiares, violência doméstica ou até por
vingança, para impedir o contato da criança com o pai.
O
compromisso assumido pelos Estados-partes, nesse tratado multilateral, foi estabelecer
um regime internacional de cooperação, envolvendo autoridades judiciais e
administrativas, com o objetivo de localizar a criança, avaliar a situação em
que se encontra e, só então, restituí-la, se for o caso, ao seu país de origem.
Busca-se, a todas as luzes, apenas e tão somente atender ao bem-estar e ao
interesse da criança.
No
entanto, alguns tribunais, olvidando-se do bem-estar da criança, interpretam a
Convenção de forma extremamente objetiva e entendem pela restituição imediata
da criança, independente do caso, tornando-se prescindível a realização de
perícia psicológica para se verificar o caso concreto.
2. Da Interpretação da Convenção de
Haia pelo Judiciário:
A
interpretação realizada pelo judiciário nos casos tratados pela Convenção de
Haia, em algumas vezes, é extremamente fria e restritiva, no momento em que o
julgador entende pelo regresso imediato da criança ao país de residência, sem
se ater ao caso concreto e sem realizar uma perícia psicológica para verificar
o enquadramento em uma das exceções trazidas pela Convenção de Haia.
A Ministra
Ellen Gracie, que instituiu, quando no mandato de presidente do Supremo
Tribunal Federal, o Grupo Permanente de Estudos sobre a Convenção de Haia de
1980, no julgamento da ADPF 172 pelo Tribunal Pleno daquela Corte, publicado em
21/08/2009, posicionou-se da seguinte forma:
A primeira
observação a ser feita, é a de que estamos diante de um documento produzido no
contexto de negociações multilaterais a que o País formalmente aderiu e
ratificou. Tais documentos, em que se incluem os tratados, as convenções e os
acordos pressupõem o cumprimento de boa-fé pelos Estados signatários. É o que
expressa o velho brocardo ‘Pacta sunt ser vanda’. A observação dessa prescrição
é o que permite a coexistência e a cooperação entre nações soberanas cujos
interesses nem sempre são coincidentes.
(...)
Atualmente,
porém, a Convenção é compromisso internacional do Estado brasileiro em plena
vigência e sua observância se impõe. Mas, apesar dos esforços em esclarecer conteúdo
e alcance desse texto, ainda não se faz claro para a maioria dos aplicadores do
Direito o que seja o cerne da Convenção. O Compromisso assumido pelos Estados-membros,
nesse tratado multilateral, foi o de estabelecer um regime internacional de
cooperação, tanto administrativa, por meio de autoridades centrais, como
judicial. A Convenção estabelece regra processual de fixação e competência
internacional que em nada colide com as normas brasileiras a respeito,
previstas na Lei de Introdução ao Código Civil. Verificando-se que um menor foi
retirado de sua residência habitual, sem consentimento de um dos genitores, os
Estados-partes definiram que as questões relativas à guarda serão resolvidas
pela jurisdição de residência habitual do menor, antes da subtração, ou seja,
sua jurisdição natural. O juiz do país da residência habitual da criança foi o
escolhido pelos Estados-membros da Convenção como o juiz natural para decidir
as questões relativas à sua guarda.
Desta
forma, segundo o entendimento defendido pela Ministra Ellen Gracie, o
magistrado, diante de um pedido de restituição da criança retirada ilicitamente
do país de residência, deve conceder o pedido imediatamente, devolvendo a
criança ao país de residência natural, para que neste sejam discutidas as
questões relativas à guarda.
No
entanto, a decisão proferida imediatamente pelo magistrado, sem sequer realizar
uma perícia psicológica, põe em risco o bem-estar da criança, pois não há como
se constatar se esta criança não está retornando para um ambiente inapropriado,
sendo afastada da figura de um dos pais.
Muitas
vezes a violência doméstica sofrida no país de residência motiva a genitora a
fugir com a criança, para que não seja mais vítima do agressor e, tal situação,
em regra, somente é comprovada através de perícia psicológica.
Em alguns
casos, a genitora tenta conseguir proteção no país onde sofreu agressões e,
diante da ausência de respaldo e resposta deste, temendo por sua própria vida,
foge para seu país de origem, com a esperança de conseguir proteção. No
entanto, ao chegar ao seu país de origem, com seu filho nos braços, muitas
vezes a mulher vítima de agressão é acusada pelo sequestro de seu filho e tem a
criança retirada de seus braços e devolvida ao seu agressor, sem que se atenha
à motivação de sua fuga.
Segundo o
entendimento defendido pela Ministra Ellen Gracie, nos casos que envolvem
sequestro internacional de crianças, não caberia ao magistrado competente para
julgamento do pedido de restituição da criança ater-se ao mérito do caso concreto,
mas sim, apenas restituir a criança imediatamente, deixando que as questões
como a guarda sejam decididas no país de residência natural da criança.
No
entanto, se este país de residência natural da criança, não foi capaz de dar
respaldo e proteção a uma mulher agredida por seu marido, muito provavelmente
também não dará cumprimento ao princípio do melhor interesse da criança.
E, o
imediato regresso da criança, implica ainda em seu afastamento da figura
materna, pois, em grande parte dos casos, a mulher que empreendeu fuga para
preservar sua vida, não poderá retornar ao país em que reside seu agressor, sob
pena de colocar sua vida em risco.
Os casos
que envolvem crianças não podem ser interpretados restritivamente, não se trata
aqui de números e sim do destino da vida de uma criança, onde uma perícia
psicológica torna-se primordial.
3. A Importância da perícia
psicológica:
A
Convenção de Haia, em seu texto, prevê diversas hipóteses como exceção para o
retorno da criança ao país em que tinha residência habitual:
I - o artigo 12 prevê como exceção à
restituição, quando for provado que a criança já se encontra integrada no seu
novo meio;
III - o
artigo 13 prevê três situações distintas:
a) quando
a pessoa, instituição ou organismo que tinha a seu cuidado a pessoa da criança
não exercia efetivamente o direito de guarda na época da transferência ou da
retenção, ou que havia consentido ou concordado posteriormente com esta
transferência ou retenção;
b) quando existe um risco grave de a criança,
no seu retorno, ficar sujeita a perigos de ordem física ou psíquica, ou, de
qualquer outro modo, ficar numa situação intolerável; e
c) a
consideração da opinião do menor que já possui grau de maturidade adequada; e
IV - o
artigo 20 prevê que o retorno poderá ser recusado quando não for compatível com
os princípios fundamentais do Estado requerido com relação à proteção dos direitos
humanos e das liberdades fundamentais.
Compete à
autoridade judicial do local onde se encontra a criança a decisão sobre estas
situações, nas quais pode e deve obstar o retorno da criança ao país de residência
habitual, mesmo que ilícita tenha sido a sua transferência ou retenção.
Dado o status normativo dos tratados e
convenções que versam sobre direitos humanos ou diversos, a interpretação das
normas fundadas em tais diplomas deve se dar de forma consentânea com os
parâmetros constitucionais, sendo oportuno salientar que as orientações e
exceções trazidas pela Convenção de Haia de 1980 se harmonizam com o princípio
constitucional da absoluta prioridade dos direitos de crianças e adolescentes,
constante do art. 227 da
Constituição Federal.
Segundo
Fabiano Rabaneda em seu artigo: Da Teoria da Convencionalidade aplicável ao
Tratado da Haia, tratando-o como norma supralegal e da hierarquia Constitucional
dos Princípios da Doutrina da Proteção Integral insculpida no artigo 227 da
Constituição Federa[1]:
“Segundo a
tese conduzida pelo Min. Gilmar Mendes, os tratados de direitos humanos não
aprovados por quorum qualificado seriam supralegais; para o Supremo Tribunal
Federal os tratados não relacionados com os direitos humanos possuem valor
legal.
A
Convenção da Haia tem status de supralegal, o que nos remete sua situação
inferior ao artigo 227 da Constituição Federal.
Neste
sentido, as considerações acerca da aplicação da Haia tem caráter essencialmente
subjetivas, vez que em confronto com a Doutrina da Proteção Integral, são
exigem do juiz à descoberta do que lhe parece ser o melhor interesse da criança
em cada caso concreto.
Por
isso a Convenção da Haia, não obstante apresente reprimenda rigorosa ao
sequestro internacional de menores, com determinação expressa de seu retorno ao
país de origem, garante o bem estar e a integridade física e emocional da
criança, o que deve ser avaliado de forma criteriosa, fazendo-se necessária a
prova pericial psicológica. REsp 1.293.800-MG, Rel. Min. Humberto Martins,
julgado em 28/5/2013.
Não
se deve ordenar, neste contexto, o retorno ao país de origem de criança que
fora supostamente retida ilicitamente no Brasil por sua genitora na hipótese em
que, tenha sido demonstrado, por meio de avaliação psicológica, que a criança
já estaria integrada ao novo meio em que vive e que uma mudança de domicílio
poderia causar malefícios ao seu desenvolvimento.
Isso
porque o artigo 227 da Constituição Federal tem como escopo a tutela do
princípio do melhor interesse da criança, de forma a garantir-lhe o bem estar e
a integridade física e emocional de acordo com suas verdadeiras necessidades.
Para que se possa entender esse princípio, bem como para sua aplicação, o
julgador deve considerar uma série de fatores, como o amor e os laços afetivos
entre os pais, os familiares e a criança, o lar da criança, a escola, a
comunidade, os laços religiosos e a habilidade do guardião de encorajar contato
e comunicação saudável entre a criança e o outro genitor.
Essas
considerações, essencialmente subjetivas, são indicadores que conduzem o juiz à
descoberta do que lhe parece ser o melhor interesse da criança em cada caso
concreto.”
A
Convenção de Haia tem sido interpretada de uma forma fria pelo judiciário, que
muitas vezes se esquece de que não está tratando de controvérsias sobre
impostos ou juros e, sim sobre o futuro de uma criança.
Conforme
relatado pelos professores doutores Valerio de Oliveira Mazzuoli e Elisa
Mattos, em artigo[2]
“Sequestro Internacional de crianças fundando em violência doméstica perpretada
no país de residência: a importância da perícia psicológica como garantia do
melhor interesse da criança”:
“Observa-se
que a aplicação da Convenção tem sido, muitas vezes, realizada de forma fria
(até mesmo caprichosa) pelo Poder Judiciário, sem levar em consideração todo um
mosaico de fatores presentes em caso de sequestro internacional de crianças. No
interior desse mosaico encontram-se diversos interesses que devem ser levados
em conta pelo julgador para que decida com justiça o caso concreto, à luz do
que melhor atenda aos interesses da criança (bestinterestofthechild)”.
A
Convenção de Haia não pode ser interpretada de forma restritiva, sem levar em
conta suas exceções, pois corre-se o sério risco de se colocar uma criança em
situação de risco grave.
As provas,
nos casos como o ora tratado, que envolvem crianças, são de difícil acesso,
pois, uma criança na Primeira Infância tem dificuldade de exteriorizar seus
sentimentos, sendo, desta forma, de suma importância a participação de
psicólogos e assistentes sociais na realização de uma perícia psicológica,
possibilitando que tais profissionais, preparados para tanto, possam trazer ao
juízo as reais condições em que a criança se encontra.
Ainda que
a criança não tenha sofrido violência física, a violência perpetrada contra sua
genitora a atinge de forma indireta, lhe causando lesões psicológicas. E, o ambiente
conflituoso vivido entre o agressor e a mãe da criança, inevitavelmente afeta a
criança.
Sobre o
assunto Valério de Oliveira Mazzoli, em artigo já referido:
“A
literatura especializada demonstra que crianças que convivem em ambientes onde
existe violência podem também ser vitimizadas, tanto de forma direta como
indireta. Diversos estudos compilados por Shettye Edleson, realizados com
crianças que convivem com a violência doméstica, apontam que muitas vezes elas
também se tornam vítimas das agressões físicas ou psicológicas proferidas por
um genitor contra o outro”.
Os
resquícios psicológicos da violência sofrida por uma criança e as lesões decorrentes
dos conflitos entre os pais somente podem ser aferidas através de uma perícia
psicológica.
E, além
disso, as exceções previstas na própria Convenção de Haia somente podem ser
aferidas com a realização de perícia psicológica.
7 – Conclusão
Conclui-se,
portanto, que, em que pese a Convenção de Haia se tratar de um compromisso
internacional do Estado brasileiro, esta deve ser analisada em consonância com
premissas difundidas em nossa Constituição Federal, como o principio do melhor
interesse da criança.
Não cabe ao
julgador tratar uma criança como um objeto a ser devolvido ao seu dono e, sim,
como sujeito de direito, levando-se em conta todas as peculiaridades do caso
concreto.
É
imprescindível nos casos em que envolvam crianças a realização de pericia
psicológica, correndo-se o risco, na ausência desta, de causar à criança lesões
irreparáveis.
Juliana Ramos Fernandes Braga é advogada, sócia
do escritório Braga, Storti e Borgo Adocacia e Membro da Comissão de Direito de
Família da Ordem dos Advogados de Londrina.
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